quinta-feira, 31 de julho de 2008

Os vários sentidos da palavra razão

Os vários sentidos da palavra razão

Nos capítulos precedentes, insistimos muito na afirmação de que a Filosofia se realiza como conhecimento racional da realidade natural e cultural, das coisas e dos seres humanos. Dissemos que ela confia na razão e que, hoje, ela também desconfia da razão. Mas, até agora, não dissemos o que é a razão, apesar de ser ela tão antiga quanto a Filosofia.
Em nossa vida cotidiana usamos a palavra razão em muitos sentidos. Dizemos, por exemplo, “eu estou com a razão”, ou “ele não tem razão”, para significar que nos sentimos seguros de alguma coisa ou que sabemos com certeza alguma coisa. Também dizemos que, num momento de fúria ou de desespero, “alguém perde a razão”, como se a razão fosse alguma coisa que se pode ter ou não ter, possuir e perder, ou recuperar, como na frase: “Agora ela está lúcida, recuperou a razão”.
Falamos também frases como: “Se você me disser suas razões, sou capaz de fazer o que você me pede”, querendo dizer com isso que queremos ouvir os motivos que alguém tem para querer ou fazer alguma coisa. Fazemos perguntas como: “Qual a razão disso?”, querendo saber qual a causa de alguma coisa e, nesse caso, a razão parece ser alguma propriedade que as próprias coisas teriam, já que teriam uma causa.
Assim, usamos “razão” para nos referirmos a “motivos” de alguém, e também para nos referirmos a “causas” de alguma coisa, de modo que tanto nós quanto as coisas parecemos dotados de “razão”, mas em sentido diferente.
Esses poucos exemplos já nos mostram quantos sentidos diferentes a palavra razão possui: certeza, lucidez, motivo, causa. E todos esses sentidos encontram-se presentes na Filosofia.
Por identificar razão e certeza, a Filosofia afirma que a verdade é racional; por identificar razão e lucidez (não ficar ou não estar louco), a Filosofia chama nossa razão de luz e luz natural; por identificar razão e motivo, por considerar que sempre agimos e falamos movidos por motivos, a Filosofia afirma que somos seres racionais e que nossa vontade é racional; por identificar razão e causa e por julgar que a realidade opera de acordo com relações causais, a Filosofia afirma que a realidade é racional.
É muito conhecida a célebre frase de Pascal, filósofo francês do século XVII: “O coração tem razões que a razão desconhece”. Nessa frase, as palavras razões e razão não têm o mesmo significado, indicando coisas diversas. Razões são os motivos do coração, enquanto razão é algo diferente de coração; este é o nome que damos para as emoções e paixões, enquanto “razão” é o nome que damos à consciência intelectual e moral.
Ao dizer que o coração tem suas próprias razões, Pascal está afirmando que as emoções, os sentimentos ou as paixões são causas de muito do que fazemos, dizemos, queremos e pensamos. Ao dizer que a razão desconhece “as razões do coração”, Pascal está afirmando que a consciência intelectual e moral é diferente das paixões e dos sentimentos e que ela é capaz de uma atividade própria não motivada e causada pelas emoções, mas possuindo seus motivos ou suas próprias razões.
Assim, a frase de Pascal pode ser traduzida da seguinte maneira: Nossa vida emocional possui causas e motivos (as “razões do coração”), que são as paixões ou os sentimentos, e é diferente de nossa atividade consciente, seja como atividade intelectual, seja como atividade moral.
A consciência é a razão. Coração e razão, paixão e consciência intelectual ou moral são diferentes. Se alguém “perde a razão” é porque está sendo arrastado pelas “razões do coração”. Se alguém “recupera a razão” é porque o conhecimento intelectual e a consciência moral se tornaram mais fortes do que as paixões. A razão, enquanto consciência moral, é a vontade racional livre que não se deixa dominar pelos impulsos passionais, mas realiza as ações morais como atos de virtude e de dever, ditados pela inteligência ou pelo intelecto.
Além da frase de Pascal, também ouvimos outras que elogiam as ciências, dizendo que elas manifestam o “progresso da razão”. Aqui, a razão é colocada como capacidade puramente intelectual para conseguir o conhecimento verdadeiro da Natureza, da sociedade, da História e isto é considerado algo bom, positivo, um “progresso”.
Por ser considerado um “progresso”, o conhecimento científico é visto como se realizando no tempo e como dotado de continuidade, de tal modo que a razão é concebida como temporal também, isto é, como capaz de aumentar seus conteúdos e suas capacidades através dos tempos.
Algumas vezes ouvimos um professor dizer a outro: “Fulano trouxe um trabalho irracional; era um caos, uma confusão. Incompreensível. Já o trabalho de beltrano era uma beleza: claro, compreensível, racional”. Aqui, a razão, ou racional, significa clareza das idéias, ordem, resultado de esforço intelectual ou da inteligência, seguindo normas e regras de pensamento e de linguagem.
Todos esses sentidos constituem a nossa idéia de razão. Nós a consideramos a consciência moral que observa as paixões, orienta a vontade e oferece finalidades éticas para a ação. Nós a vemos como atividade intelectual de conhecimento da realidade natural, social, psicológica, histórica. Nós a concebemos segundo o ideal da clareza, da ordenação e do rigor e precisão dos pensamentos e das palavras.
Para muitos filósofos, porém, a razão não é apenas a capacidade moral e intelectual dos seres humanos, mas também uma propriedade ou qualidade primordial das próprias coisas, existindo na própria realidade. Para esses filósofos, nossa razão pode conhecer a realidade (Natureza, sociedade, História) porque ela é racional em si mesma.
Fala-se, portanto, em razão objetiva (a realidade é racional em si mesma) e em razão subjetiva (a razão é uma capacidade intelectual e moral dos seres humanos). A razão objetiva é a afirmação de que o objeto do conhecimento ou a realidade é racional; a razão subjetiva é a afirmação de que o sujeito do conhecimento e da ação é racional. Para muitos filósofos, a Filosofia é o momento do encontro, do acordo e da harmonia entre as duas razões ou racionalidades.

Origem da palavra razão

Na cultura da chamada sociedade ocidental, a palavra razão origina-se de duas fontes: a palavra latina ratio e a palavra grega logos. Essas duas palavras são substantivos derivados de dois verbos que têm um sentido muito parecido em latim e em grego.
Logos vem do verbo legein, que quer dizer: contar, reunir, juntar, calcular. Ratio vem do verbo reor, que quer dizer: contar, reunir, medir, juntar, separar, calcular.
Que fazemos quando medimos, juntamos, separamos, contamos e calculamos? Pensamos de modo ordenado. E de que meios usamos para essas ações? Usamos palavras (mesmo quando usamos números estamos usando palavras, sobretudo os gregos e os romanos, que usavam letras para indicar números).
Por isso, logos, ratio ou razão significam pensar e falar ordenadamente, com medida e proporção, com clareza e de modo compreensível para outros. Assim, na origem, razão é a capacidade intelectual para pensar e exprimir-se correta e claramente, para pensar e dizer as coisas tais como são. A razão é uma maneira de organizar a realidade pela qual esta se torna compreensível. É, também, a confiança de que podemos ordenar e organizar as coisas porque são organizáveis, ordenáveis, compreensíveis nelas mesmas e por elas mesmas, isto é, as próprias coisas são racionais.
Desde o começo da Filosofia, a origem da palavra razão fez com que ela fosse considerada oposta a quatro outras atitudes mentais:
1. ao conhecimento ilusório, isto é, ao conhecimento da mera aparência das coisas que não alcança a realidade ou a verdade delas; para a razão, a ilusão provém de nossos costumes, de nossos preconceitos, da aceitação imediata das coisas tais como aparecem e tais como parecem ser. As ilusões criam as opiniões que variam de pessoa para pessoa e de sociedade para sociedade. A razão se opõe à mera opinião;
2. às emoções, aos sentimentos, às paixões, que são cegas, caóticas, desordenadas, contrárias umas às outras, ora dizendo “sim” a alguma coisa, ora dizendo “não” a essa mesma coisa, como se não soubéssemos o que queremos e o que as coisas são. A razão é vista como atividade ou ação (intelectual e da vontade) oposta à paixão ou à passividade emocional;
3. à crença religiosa, pois, nesta, a verdade nos é dada pela fé numa revelação divina, não dependendo do trabalho de conhecimento realizado pela nossa inteligência ou pelo nosso intelecto. A razão é oposta à revelação e por isso os filósofos cristãos distinguem a luz natural - a razão - da luz sobrenatural - a revelação;
4. ao êxtase místico, no qual o espírito mergulha nas profundezas do divino e participa dele, sem qualquer intervenção do intelecto ou da inteligência, nem da vontade. Pelo contrário, o êxtase místico exige um estado de abandono, de rompimento com a atividade intelectual e com a vontade, um rompimento com o estado consciente, para entregar-se à fruição do abismo infinito. A razão ou consciência se opõe à inconsciência do êxtase.

Razão instrumental

Razão instrumental

Razão instrumental é um termo cunhado provavelmente por
Max Horkheimer no contexto de sua teoria crítica para designar o estado em que os processos racionais são plenamente operacionalizados (Escola de Frankfurt); à razão instrumental, Horkheimer opõe a razão crítica.
A razão instrumental nasce quando o
sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. A razão ocidental, caracterizada pela sua elaboração dos meios para obtenção dos fins, se hipertrofia em sua função de tratamentos dos meios, e não na reflexão objetiva dos fins. Na medida em que razão se torna instrumental, a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornar-se um instrumento de dominação, poder e exploração, sendo sustentada pela ideologia cientificista, que, através da escola e dos meios de comunicação de massa, engendra uma mitologia - a Religião da Ciência - contrária ao espírito iluminista e à emancipação da Humanidade.
Tendo cedido em sua autonomia, a
razão tornou-se um instrumento. No aspecto formalista da razão subjetiva, sublinhada pelo positivismo, enfatiza-se a sua não-referência a um conteúdo objetivo; em seu aspecto instrumental, sublinhado pelo pragmatismo, enfatiza-se a sua submissão a conteúdos heterônomos. A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu papel de domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para avaliá-la."' (Max Horkheimer, Eclipse da Razão, Ed. Centauro, p. 29).
Embora a expressão razão instrumental tenha sido cunhada por Horkheimer, muitos autores clássicos se preocuparam, antes dele, em desvendar as novas bases das sociedades modernas, sobretudo o seu caráter eminentemente mercantil.
Entre eles, destaca-se
Max Weber, o primeiro a relacionar o surgimento da modernidade ao predomínio em todas as esferas da sociedade da ação racional com relação a fins - isto é, aquela que ocorre quando o indivíduo orienta sua ação pelos fins, meios e consequências secundárias, ponderando racionalmente tanto os meios em relação às consequências secundárias, como os diferentes fins possíveis entre si(Economia e sociedade). Esta seria, portanto, a marca do desencantamento do mundo característico do Aufklärung e dos tempos modernos.
Ainda segundo Weber, embora esse padrão de ação resulte em maior poder e domínio sobre a
Natureza, também escraviza o Homem, reprimindo a sensibilidade, a afetividade, a emotividade e as demais formas sensíveis de conduta humana, gerando especialistas sem espírito e sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo).
Mais recentemente, também
Habermas, ao abordar a Modernidade, criticou a ação racional com relação a fins ou razão instrumental. Todavia, ao contrário de Weber, que era pessimista quanto ao futuro da Humanidade, Habermas mantém sua crença no projeto moderno e no crescente desenvolvimento da razão como base para a emancipação humana.

Razão

Razão

"O Sonho da Razão produz monstros", de Francisco Goya.
Os
filósofos racionalistas opõem a razão à imaginação. Enquanto empregar a imaginação é representar os objetos segundo as qualidades secundárias - aquelas que são dadas aos sentidos - empregar a razão é representar os objetos segundo as qualidades primárias, aquelas que não são dadas à razão.
Empregada em filosofia, a palavra razão comporta vários significados:
A razão como característica da condição humana, quando se define o homem, por exemplo, como animal racional, ou se diz que alguém está no uso da razão ou a perdeu;
Princípio ou fundamento, a razão pela qual as coisas são como são ou ocorrem os fatos desta ou daquela maneira.
A razão não é uma instância transcendente, dada de uma vez por todas, mas um processo que se desdobra ou realiza ao longo do tempo. Dir-se-ia que, assim como o homem é a história do homem, a razão é a história da razão.
Zenão de Eléia, identificando a razão com o ser e admitindo que o princípio de identidade, formalmente entendido, é o princípio fundamental da razão, argumenta para provar que o movimento e a pluralidade, envolvendo contradição, são irracionais e, portanto, irreais, meras ilusões dos sentidos.
A razão, entendida como diálogo, não tem um conteúdo eventual, mas permanente, o conhecimento de si mesma e das essências das coisas, do universal. A razão
socrática é o método que permite, pelo diálogo, proposição da tese, crítica da tese ou antítese, chegar à síntese, a essência descoberta em comum, ao termo da controvérsia.
Há quem acredite que a razão se subordina totalmente à
, pois o critério supremo da verdade é o dogma, a revelação divina. A razão abdica de suas exigências próprias em favor de uma instância meta-racional, cuja autoridade não se discute. A razão é tida, por alguns, como instrumento não de demonstração, mas de afirmação da fé.
É na filosofia de
Hegel que se encontra a primeira tentativa de introduzir a razão na história.

Hegel

A razão rege o mundo, a história universal transcorre racionalmente, mas a razão que se manifesta ou revela na história é a razão divina, absoluta. É a razão que constitui a história.
A razão vital, a razão histórica, nada aceita como simples fato, mas tudo fluidifica no in fieri de que provém e ao qual se dirige, procurando ver não o fato cristalizado ou feito, mas fazendo-se ou como se faz.
Para essa oposição entre o que é da imaginação e o que é da razão ver
Descartes, Regras para a Orientação do Espírito, "Regra 12".